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sexta-feira, 8 de maio de 2020

PRECONCEITO












Essa é uma historinha um pouco ácida. Mas vale ser contada. Ela é sobre preconceito.

Vejo muita gente falando que o preconceito acabou.
Posso te dizer que não.
Passei grande parte da minha vida cara a cara com ele. Acho que 35 anos.

Ah. Importante ficar claro que apesar de descrever tudo isso aí, a vida apesar de dura (para todos) é ótima. Levanto e ando sempre que posso. Sobrevivo bem e nunca dei trela pra fortalecer meu "amiguinho invisível".
Um dia, quem sabe, ele desaparece de verdade.

Bem.

Menino. Moreno/negro em escola particular, quando pequeno (com muito esforço dos meus pais).
Parecia ser algo fluido, impalpável e silencioso. Era completamente "invisível" aos meus olhos, mas eu sabia que ele estava ali. Parecia que permeava o ar, por onde eu andava. Entrando nos corredores, salas, cantina. Lá estava ele. Meu "amigo invisível" de infância  - o "Preconceito". Jamais teria consciência, naquela época, do tamanho de sua imbecilidade.

Entro numa festa de aniversário e dou uma cueca de presente ao aniversariante. Que mal tem? Era o que meus pais podiam comprar. Minha amiguinha pega a cueca e joga numa lata de lixo. "Isso aqui não é presente, não!". Não entendo nada. Afinal, a mina era bonitinha, Loira, olhos verdes. E eu ainda gostava ela. Porque isso? Não tinha nenhuma noção do que tava rolando... fiquei lá sem entender, querendo explodir a festa com uma granada de mão... uma fagulha de raiva dentro de mim. Mas raiva pelo que? Não conseguia entender.

Um pouco crescido, vem ensino médio.
Excursão da escola.
Todo mundo com seu Disc Man, ouvindo as modinhas da época.
Na minha mão carregava um trambolho, um Walk man e várias fitas. Uma delas, dos "3 porquinhos", porém gravadas com o Album "Somewhere in time" do Iron Maiden. Um sentimento estranho pairava no ar. As relações não pareciam ser iguais. O que era essa porra?

Aí vem as festinhas americanas. Muitas vezes em mansões. Nunca dei uma festa americana, pois lá a casa era pequena!
Ia nas festas, mas sabia que ali não era ambiente para mim. Enturmava e tudo. Brincava. A galera curtia. Mas sentia algo estranho, pois tinha umas brincadeiras lá de "preto só faz merda" etc. As "patricinhas" te olhando diferente, sem aproximar muito de você... Será coisa da minha cabeça? Penso: "Deve ser".

Aí vem os apelidos. "Toddyn", "Café", "Marginal", "Urubu". Finjo que é bobeira, não ligo. E acabei não ligando mesmo, afinal meu e-mail até hoje é "raphaecafe@hotmail.com".
Bem, não é isso que me fará menor.

Daí vem a vida "semi adulta". Você senta no buteco, do lado da casa dos seus pais. Você vê um carro parar, e junto dele a polícia. Uma pessoa fala com a polícia que tem certeza que você tinha roubado a casa dela.
Imagine só: Eu, sentado num buteco na esquina da casa dos meus pais, com uma brahma na mesa e R$ 15,00 no bolso. E sem identidade. Pensei: "Tô fudido com esses caras...".
A Polícia te enquadra e pergunta se você está armado.  A resposta mental é "Claro que não, você acha que se estivesse armado eu ia ficar aqui de bobeira esperando você chegar perto?".
O policial começa a chantagem. Acho que eles estavam querendo grana.
Bem... minha sorte foi meus pais terem me visto naquela situação, para me tirar daquele embaraço todo.

Aí vem a idade adulta. Apesar das piadinhas idiotas, tudo estava certo.
"Você é até um negrinho bonitinho, estudioso e dedicado!"

Após formado, aparece algumas viagens a trabalho para a Europa: França, Bélgica, Alemanha, Holanda, Bósnia.
Num intervalo de cerca de 10 anos, alguns acontecimentos interessantes. Dentre eles cito alguns, que devem ser pura coincidência.
Tem episódios que felizmente optei por esquecer.

Nas alfandegas, é  sempre um interrogatório interminável. "Sim, estão fazendo a parte deles"  - penso.

Alguns Bares e Pubs na Alemanha não me deixaram entrar (somente acompanhado com alguém de lá). Em Berlin, lembro de uma festa que não me deixaram entrar (festa paga, porém aberta). Vi a fila de entrada do meu lado e eu sem poder entrar. Em Dusseldorf, vários episódios desses ocorreram. Vários (fiquei 3 meses e meio lá). E lá estava meu "amigo invisível" de infância me assombrando novamente.

Você tenta comer no interior da França em um restaurante e o Dono simplesmente finge que você não existe. "No entrance" para você.
Será que pisei na merda?

Cada Aeroporto é um constrangimento. Muita revista da Polícia.
Penso: "Ah, é o trabalho dos caras"...

Fechando as malas para voltar ao Brasil, em uma das vezes que estive lá (a última), passo na Alfândega (Polícia federal). Meu colega de viagem ao meu lado. Branco, com 3 malas cheias.
Eu, negro, de mochila com notebook e mais uma mala apenas. Passo minha mala para o colega e fico só de mochila para evitar constrangimentos.
Adivinha quem foi revistado? E você acha que isso é Porque?  Lá estava meu "amiguinho invisível" novamente.

E ele está aí. Cada esquina, cada piada, cada comentário. Pairando no ar, se manifestando sutilmente.
Só quem sente na pele vai entender. 
Basta por hoje.

6 comentários:

inez disse...

Meu filho,belo texto,esse amiguinho aí nunca vai desaparecer,temos que conviver com ele,não dá bola,qdo ele surgir entra na dele e tudo mais.Não sabia que tinha sofrido tanto assim com isso.Ainda bem que vc cresceu entendeu bem tudo isso.Mais na vida acho que o preconceito está com todos nós, achamos que não possuímos, mais ele está presente em todo ser humano.Ele surge em todas situações, seja racial,social é o famoso Bullying que aparece em casa,na escola,por toda parte.Temos que estar sempre preparados pra aceitar sem sentimentos de raiva,pois só vai piorar.Até os famosos sofrem com isso dirá nós.Vamos vivendo com nossos valores que isso que importa,o resto é resto.Levanta a cabeça e seja vc,com caráter, dignidade que isso que é digno de um homem.Te amo demaissss❤❤❤❤❤❤😘😘😘

Vitão disse...

Vide acima. Disse tudo.
Lendo seu texto lembro de alguns livros que já li sobre o período da escravidão. Duro essa parte da história. E, pior, saber que esse comportamento se perdura até os dias atuais.
Enfim, concordo em tudo que tua mãe escreveu acima, o preconceito é amplo e estar em todos nós, embora talvez de forma mais branda e respeitosa. Por fim, o que de fato importa são sim os nossos valores.
É seguir em frente e de cabeça erguida, sempre fazendo o bem.
Acho bom vc ter compartilhado essas situações desagradáveis, pois vai contribuir para elevar a moral de muitos nesta mesma situação.
Comigo mesmo já aconteceu fato semelhante, frequentei a trabalho um restaurante muito nobre e os olhares eram intimidadores dado a vestimenta não harmonizar tanto com o ambiente (na visão deles), mas me mantive forte, cabeça erguida e no final ganhei mais uma experiência de vida. Hoje procuro sempre reconhecer as pessoas/profissionais que por muitos passam despercebidos. É isso, a vida é um eterno aprendizado.
Abraço meu amigo.

Calunga disse...

É seguir mesmo. Eu não me atinjo com isso mais não. Resolvi escrever porque vi uma amiga dizendo que o preconceito acabou. Obrigado pelos comentários!

Victor Cerqueira Assad disse...

Irmão, me veio nossa infância. Melhores amigos. Orgulho. Cada degrau valeu. Sinto-me culpado por ser tão inocente e nunca ter reparado isso na nossa infância. Lembro-me claramente das festas, americanas, e outras. Não sei se te faria sentir melhor, mas as vezes cresceria melhor. Lindo texto, e a mais cruel realidade, infelizmente. Saudades irmão!

Calunga disse...

Irmão, foi o tempo, e foi o que foi. A vida segue com aprendizado. graande abraço e obrigado por ter dedicado tempo a leitura da resenha. abraço!

Luciana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.